Noemi Jaffe ilumina nosso trabalho :: janeiro 2010

O texto abaixo, sobre o trabalho das Rutes, é da Noemi Jaffe.
Foi feito em parceria com o Conselho Britânico pra uma futura publicação.
A Noemi e a Roberta Mahfuz são especialistas em partilhar suas estrelas.
Obrigada lindonas!
 
“As Rutes”, antes de tudo, é um nome engraçado. Como se fossem duas senhoras judias que gostam de ficar fofocando à porta de casa todas as tardes. É também um nome singular e individual, coletivo e plural ao mesmo tempo, como se todas as Rutes, ou pelo menos essas duas, fossem uma só. É definido e totalmente indefinido. Além disso, Rute não é um nome comum em português; mesmo assim, as Rutes , no plural, tem algo de “Zé”, de “fulano”, de “qualquer um”. Como se também fosse possível dizer: as Rute.

E tudo isso é verdadeiro quando se pensa no trabalho destas duas artistas performers_Beatriz Carvalho e Cristiana Ceschi. .

São mesmo duas senhoras do Bom Retiro fofocando diariamente à porta de casa, fazendo intrigas e inventando histórias- duas pessoas totalmente distintas, com formações e propostas diferentes, mas que, juntas, constituem uma unidade indissolúvel e necessária. São uma dupla com uma proposta estética única e original, mas, ao mesmo tempo, de uma originalidade que conversa com o conhecido e o familiar.

Vamos por partes:

1. Bê e Cris, “As Rutes”, são mesmo fofoqueiras e intrigueiras. Afinal, de que mais se trata o ato de inventar narrativas, senão do conhecido e prazeroso ato de fofocar? Fofocar é criar versões, acrescentar fatos, reinventar as verdades e fazer da mentira uma performance estilizada- fofocar não é para qualquer um. E “As Rutes” saem pela cidade atrás de fofocas perdidas. “Ei, moço, você tem uma fofoca pra contar? A gente quer muito ouvir.” E as pessoas param, inventam, falam a verdade, criam caminhos e “As Rutes” nos conduzem pelos desvios das mentiras verdadeiras de quem anda pelas ruas. Desta forma, vestidas de algo entre palhaças e atrizes, desnaturalizando o olhar dos passantes, elas apelam - com placas, sinais, avisos - para uma outra condução e caminhada possivel. Os passantes se vêem chamados a reconstituir seus caminhos, geográficos e históricos, e a se considerarem não mais apenas como peças de uma engrenagem maior, mas como sujeitos de uma história pessoal, que, esta sim, pequena do jeito que for, é, naquele momento, constituinte do imaginário urbano. Se, por alguns minutos, uma prostituta tem a oportunidade de fazer de sua insignificante historia uma grande versão, uma grande fofoca que será ouvida pelas Rutes (todo mundo e ninguém), por ela mesma e, posteriormente, por muitos outros desconhecidos, então espera-se que aqueles minutos de fabulação a façam reconhecer que sim, que ela tem mesmo uma historia e que não é apenas parte de histórias alheias. Desta maneira, “As Rutes”, ao se vestirem de forma divertida e inusitada, ao usarem placas de trânsito invertidas e renovadas, ao solicitarem do passante que preste atenção a si no meio de seu caminho – ou que seja, por alguns instantes, o próprio caminho – conseguem ritualizar e dar significado às historias individuais, invertendo temporariamente a proporção e o sentido geográfico das narrativas: as coisas passam a caminhar do grande para o pequeno, do coletivo para o individual, do funcional para o inútil. Enfim, fofoca.


2.    2. “As Rutes” é um nome individual e coletivo.
“As Rutes” são uma dupla. Uma dupla é uma unidade feita de duas partes diferentes. E é isso mesmo o que elas são e fazem.
Cris tem formação teatral, como clown, narradora de histórias e performer. É uma artista da voz, da palavra e do corpo. Sua atuação acontece no nível da recriação corporal de si e do outro, organizada para que se possa dar lugar à fabulação verbal e à reacomodaçao física. Sua presença estranha e programada, consciente, libera a presença e a fala do outro.
Bê é artista plástica. Sua condução do trabalho, por isso mesmo, é mais espacial, concentrada e menos narrativa. Imagino que esteja nela a responsabilidade pelas marcações gráficas, pelos sinais, pela disposição e movimentação únicas no espaço urbano.
Cada uma é diferente e exerce funções diferentes, mas, juntas, formam uma unidade, um nó muito bem atado, mas sempre constituído de duas partes. Não seria o caso de algo como: “Oh, agora encontrei minha alma gêmea! Somos um só, somos irmãs!” Não. “As Rutes” é uma unidade plural, em que palavra e espaço, historias e movimento, sinais e voz se combinam e se completam para organizar, como elas adoram dizer, possibilidades. “As Rutes”, juntas, são mesmo isso, organizadoras de possibilidades. Possibilidades que só podem acontecer a partir dessa duplicidade de competências, pois seu trabalho é narrativo e urbano e, nele, uma coisa não pode existir sem a outra. Tempo e espaço mancomunados para que os indivíduos e, com ele, a cidade, falem e se reconheçam como passado e como presente.
Mas ao chamar essa dupla de “As Rutes”, como que como que se indefine e se coletiviza este nome. Trata-se de uma dupla e de um trabalho muito bem definidos, com propostas claras e construídas cuidadosamente, mas que também propõe perder-se no espaço e, eventualmente, também no tempo, alem de lidar com historias também elas perdidas. Assim, se alguém por acaso conhecer duas pessoas de nome Rute, também elas podem ser as Rutes- também elas, inadvertidamente, estão fazendo o mesmo trabalho que “As Rutes” maiúsculas.

3. Rute não é um nome comum em português, mas poderia ser um zé, um fulano, um qualquer.
Aqui aparecem os domínios do familiar e do não-familiar, com os quais a dupla trabalha esteticamente. Recorrendo a técnicas de grande sofisticação poética e plástica, além de munidas de ousadia e até de uma certa “cara-de-pau”, elas, mesmo assim, se aproximam do conhecido, do comum. Ou melhor, fazem-no aflorar e permitem que ele seja visto com olhos novos. Como se fosse preciso mergulhar no desconhecido para trazer, do fundo dele, tudo o que já conhecemos. Quando um inglês de Brighton entra numa cabine telefônica comum, apelidada entretanto de “mágica” e nela, ao invés de proceder mecanicamente a uma ligação, é instado a desabafar algum sonho secreto e íntimo para uma câmera, ele retira do fundo de si algo que já sabia, mas tinha esquecido. Nós, espectadores, ao assisti-lo, nos lembramos de sonhos e fantasias semelhantes. Algumas pessoas chegam a agradecer às artistas por elas permitirem que uma antiga história reapareça, uma história emudecida, há tanto tempo não ouvida, que até a própria pessoa esqueceu. Com “As Rutes”, alguém quer escutar e a escuta possibilita a narrativa e faz com que a pessoa reconheça que ela também tem uma história. Comum mas particular.
Desta forma, “As Rutes”, de domínio ainda elevado e culto, podem se transformar em “As Rute”, de domínio público e banal.
“As Rutes”, de certa forma, atravessam incólumes as discussões acirradas sobre o papel das narrrativas na assim chamada “pós-arte” ou “arte pós-moderna”. Se alguns dizem que a narrativa pertence a um mundo e a uma arte já extintos, quando ainda se acreditava em linearidade espacial e temporal e em representações e outros brigam pela manutenção e pela força da metáfora narrativa, “As Rutes” parecem se localizar num lugar aquém ou além destas discussões, não somente produzindo, mas também suscitando narrativas. A dupla tem a “caretice” de manter o aspecto utópico da produção artística em tempos que se dizem pós-utópicos. Mas, convenhamos, o que “As Rutes” conseguem estabelecer, com sua “petulância” narrativa, não é exatamente uma u-topia? Um não lugar localizado exatamente no fulcro dos lugares, uma fenda temporal e espacial por onde se escapa para um lugar possível? Como falar em pós-utopia, quando um homem-sanduíche, no centro de São Paulo, diz sonhar com outras terras enquanto placas em seu corpo vendem ouro e quando uma prostituta que trabalha no Anhangabaú diz que há coisas do passado que ela não consegue esquecer, para logo em seguida cantar um baião?
São forças móveis e mobilizadoras como essas que as ações de “As Rutes” sabem criar.
Como chama o nome disso, se é pré ou pós utópico, se é “old-fashioned” ou “hiper-contemporâneo” são questões que contrariam o seu trabalho. Defini-lo é, de alguma forma, negá-lo; impedir que ele se propague livremente. Como diz Eduardo Chillida, desenhista e escultor basco, “o horizonte é meu país e é nele que eu moro e invento meu trabalho”. Quem quiser dar nome ao trabalho de “As Rutes”, que vá procurá-lo no horizonte.
Noemi Jaffe



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