MODO DE FAZER
{cidade encantada / campo mítico}
Região: Zona Leste de São Paulo
"Este relato não está validado por um rastro físico ou um agregado na paisagem. É sempre um processo de alquimia que converte o roteiro em uma ação, uma ação em uma fábula, e uma fábula em um rumor, graças à multiplicação de seus narradores". (Francis Alys)
As fotos abaixo são da intervenção “Pedal Belém – Território
Sombrio”.
Fomos convidadas a montar um percurso “assombrado” para a
comunidade de ciclistas que fraquentam o SESC Belenzinho na Virada Cultural –
São Paulo - 2018
Depois de tudo, deu vontade de escrever sobre o que vivemos quando buscamos conhecer o que “nunca
aconteceu mas sempre existiu” no espaço cheio de camadas da cidade.
Esse relato quer estruturar um aprendizado.
Um modo de fazer.
São dez anos de pesquisa e prática.
Seguem aí os passos de um caminho.
Começa assim:
1. CURIOSIDADE
: o que você quer saber? o que pede para ser dito?
Parece tolo dizer, mas: é preciso querer saber. De
verdade.
São muitos os caminhos mas o que eu desejo saber é a minha
principal bússola.
Estar aberto para esse desejo é conversar com o entorno e também estar
pronto para o que pede para ser dito.
É como estar no controle da embarcação e ao mesmo tempo ser
levado pelo vento, pelo mar.
Em nossas ações percebemos que nossa curiosidade nos faz encontrar algo que está pronto para aparecer, esperando uma brecha.
Algo de uma camada mais profunda, para muito além do aparente.
2. PERGUNTA
SÍNTESE : principal dispositivo de escuta.
A pergunta é muito importante, o que exatamente eu quero saber?
Não é somente o que quero saber mas como pretendo “beber” desse conhecimento.
Por exemplo, nessa intervenção em que adentramos no campo mítico
da Zona Leste de São Paulo, chegamos nesse território com uma lista de perguntas que giravam em uma espiral em torno de uma principal:
“o que te assombra?”
Como e porquê fazer essas perguntas faz toda a diferença.
Nos apresentamos como “pesquisadoras dos assombros humanos”.
Nesse momento nosso intuito era traçar uma cartografia
dos medos compartilhados, as histórias de uma experiência comum, do manancial perene e abundante das histórias coletivas que corre por debaixo da memória isolada das pessoas que habitam a cidade.
Ouvir é fazer jorrar essa fonte.
Entramos nesse mundo ainda desconhecido como um respeitoso
viajante e não como um explorador em busca de respostas que encerram um
assunto, explicam algo.
Não é solução ou dissolução do medo.
É ir fundo nele.
Re-velar os mistérios.
Através da metáfora e da poesia “velar de novo”, tomar conta desse
mistério, ser íntimo do que é oculto e saber compartilhar através de símbolos o
que seja saboroso e nutritivo àqueles que se reconhecem em um determinado
sentimento, que é igual e diferente para cada um.
Do senso comum para a comunhão.
3. COLETA :
registrar o que nunca aconteceu mas sempre existiu.
Ouvir e registrar com entusiasmo e respeito vozes emudecidas,
difíceis de ouvir.
Vozes que são muito facilmente desconsideradas.
Tem espaço em nós para isso? Para coletar e registrar essas
vozes?
Transcriar o que ouvimos significa deixar passar por nós.
Eu consigo? Tenho maturidade e disponibilidade afetiva para isso?
Aqui é o momento de decidir se vamos ficar com a
pergunta e suas reverberações ou se seguimos adiante com tudo que recebemos
para transpor poeticamente algo novo.
Encontrar a outra forma.
4. ADORMECER/SONHAR:
deixar espaço para o mundo interior soprar as pistas.
É um tempo necessário de gestação, algo que cozinha dentro e
fora, tempo de deixar germinar. Dados de uma "realidade" se ampliam e mergulham na ficção, ou melhor, em outra realidade, na imaginação.
5. LINGUAGEM : qual a poética?
Finalmente juntar os artistas que irão participar da
intervenção.
Momento de identificar e valorizar as
singularidades de um grupo, o que cada pessoa oferece como qualidade humana e
poética. Qualidades que sustentam e encaminham com liberdade e beleza as vozes antes emudecidas.
Os artistas ancoram e inspiram a partitura da performance.
A escolha e composição do grupo é muito importante.
6. PARTITURA/ROTEIRO: conversar/café/treinar.
Dar ordem ao caos e
deixar fluir.
Encontrar os parceiros, conversar, tomar café, abrir mão de
muita coisa, ver na prática como fica, ficaria, abre mão de novo, morre um
pouco, con- fia no fundamento, no que funda o trabalho e daí faz novas
escolhas, bate o pé no que sustenta o trabalho, segura firme na urdidura, sempre ciente: nunca
está acabado, está Vivo.
7. PROLIFERAR: ser veículo, ser inteiro.
Aquilo que o ator não faz é interessante.
(Zeami)
Preservar silêncios.
Entrar em estado sincero.
Estar dentro da experiência.
Saber segredar.
Encontrar para, logo em seguida, desaparecer.
Sem aplauso.
Nutrir em Esperança sempre.
Mensageiros de novos possíveis.
Relato de Cristiana Ceschi para Beatriz Carvalho
(com quem aprendi a ver o invisível e amar o desconhecido).
Performers: Cristiano Meirelles, Esio Magalhães, Josiane Geroldi, Julia Barnabé, Marcelo Cozza, Melissa Panzutti.