o Jogo de Você . oficina e narração de histórias na mostra Todos os Gêneros de arte e diversidade . Itaú Cultural .



foto: Pedro Napolitano Prata

Em 25 e 26 de Junho | 2016 fomos convidadas a elaborar uma narração de histórias e oficina inspiradas nas questões de gênero.

Assim nasceu a "Oficina da Mistura" e "O jogo de Você: contos ancestrais sobre a fantasia de ser o que se é".

Contamos com a ajuda de pessoas valorosas:

A Cuca Dias que nos convidou para a mostra.
A artista Laura Teixeira que elaborou conosco a oficina.
A musicista Tania Piffer com sua sanfona mágica e a Fabiana Rubira que nos segurou pela mão e nos conduziu para um caminho de descobertas cheio de sentido e afeto.

Abaixo um lindo relato da Fabi sobre todo o processo:

O jogo de você: Contos Ancestrais sobre a Fantasia de ser o que se é

         “Professora, a senhora conhece algum conto de fadas sobre duas princesas ou dois príncipes que se apaixonam?” Mais uma vez essa mesma pergunta me era feita e mais um vez eu dava a resposta sobre como os contos de fadas nos falam de nosso mundo interior, não de nossos papéis sociais... Que os príncipes e as princesas nessas narrativas representam partes que existem em todos os seres humanos e quando se encontram, numa re-união selada pelo Amor, acontece o nosso felizes para sempre, que não está condicionado a uma busca estereotipada de nosso par “romanticamente” idealizado no Mundo dos Desencantados – esse que nossos corpos mortais percorrem e habitam –, mas com uma busca interior de nosso animus por sua anima...
         O olhar de profundo desapontamento daquela linda garota de cabelos bem curtinhos e jeito de moleca, que me escutava com tanta atenção e esperança, calou-me... Lembrei-me, então, de um conto romeno que eu havia narrado certa vez num sarau, há pelo menos uns dez anos... Nele, a filha mais nova de um Rei Mago mostra ao pai o seu valor, diferente daquele que era socialmente esperado dela como mulher, colocando uma armadura, montando um cavalo e se oferecendo para servir ao Imperador. Em determinado momento, é solicitado a essa valente e destemida princesa – travestida de guerreiro, sob o nome de “Príncipe Dragão” – que salve e traga para o Imperador a moça mais linda do mundo, a princesa Iliane, que havia sido raptada por uma ogra. Muitas peripécias depois, devido a uma artimanha da bela Iliane, Dragão ganha o direito à mão dessa princesa e, transformado em homem, por conta de uma “terrível” praga, que acaba se revelando uma verdadeira bênção, casa-se com ela, vira imperador, tem muitos filhos e encontra a felicidade. Emprestei o livro à garota. Ela voltou semanas depois com um brilho nos olhos para me devolvê-lo. O agradecimento chegou a mim em forma de um forte abraço e um delicado aparador de sonhos que ela mesma tinha feito para me dar.
         Cristiana Ceschi testemunhou o desfecho desse fato e quando pediram-lhe que fizesse uma sessão de estórias, no evento Todos os Gêneros: Mostra de Arte e Diversidade, no Itaú Cultural, ela me convidou para fazer parte do processo de criação dessa apresentação. Já era a segunda vez que ela me convidava para algo assim, pontuando que gostaria que eu lhes desse uma orientação a partir de meus conhecimentos mitológicos. Tratava-se de uma busca por um lastro de ancestralidade que permitissem as contadoras do Coletivo As Rutes mergulhar nas águas míticas, de onde as estórias de tradição oral vêm, e desse modo trazer para suas narrações uma conexão autêntica com esse universo atemporal das mitologias. Digo das mitologias, porque a ideia inicial era transitar por diversas culturas e perceber como essa questão dos gêneros eram tratadas.
         Começamos pelo mais óbvio, o mito do Hemafrodita, o filho de Hermes e Afrodite que desperta uma paixão louca na ninfa Salmacis; esta o agarra, enquanto ele se banhava no rio, com tremenda força que ambos acabam unidos, formado um só ser masculino e feminino. Esses seres, deuses que são homens e mulheres, estão presentes em muitas culturas, como por exemplo na mitologia indiana – Ardhanarishvara, ser que nasce da junção perfeita de Annapurna Devi, reencarnação de Pavarti, com Shiva – e na mitologia africana, na figura de Oxumaré – orixá que passa a metade de ano como homem e a outra como mulher.
         Fomos fazendo algumas belas descobertas, como a de algumas tribos indígenas norte-americana que consideravam que havia cinco gêneros básicos e aceitos em sua sociedade: homem-homem, mulher-mulher, homem-mulher, mulher-homem e indefinido. Essa crença foi combatida e suprimida, pela chegada dos ocidentais-brancos-cristãos que impuseram como “certa” apenas uma ideologia binária, exclusiva, de gêneros.
         Para além dos mitos e lendas de seres hermafroditas, trouxe-lhes a narrativa, de origem grega, sobre o sábio Tirésias que viveu como homem e como mulher. Acabei por encontrar uma lenda indiana de um rei que virou mulher – percebendo, desse modo, que no universo mitológico mais ancestral, um ser que reunia em si características masculinas e femininas era visto como sagrado, alguém dotado de uma saberia superior àqueles que eram apenas homens ou mulheres ou apenas haviam vivido suas vidas assim. Depois, fomos enveredando pelos caminhos das estórias das donzelas guerreiras, começamos com o conhecido conto brasileiro Maria Gomes, passamos pelo Romanceiro de Dom Varão e  chegamos a Amba, do Mahabharata. Essa princesa foi desprezada como esposa por duas vezes, morre e nasce novamente como filha de um rei, mas foi nessa reencarnação foi criada como homem. Ela se vestia, lutava e agia como um homem. Todos pensavam que ela era homem. Então, casa-se com uma linda princesa, deparando-se com a impossibilidade de consumar seu casamento conforme se esperava de um noivo em sua noite de núpcias. Sua noiva se assusta com a revelação e foge, ela própria foge e na floresta encontra um sábio que lhe propõe uma troca, sua masculinidade pela feminilidade daquele falso príncipe. O príncipe, agora verdadeiro, volta ao castelo, pede que lhe tragam sua noiva e consuma seu casamento. Torna-se rei – realiza-se –  tem muitos filhos, morre em batalha e seu espírito encontra a Paz.
         Mas não poderíamos nos esquecer de Mulan, a da balada antiga chinesa. Um poema narrativo composto no século VII que nos conta a estória da moça que vai para guerra para livrar seu pai de uma imposição imperial que poderia matá-lo. Ela luta ao lado de seus companheiros por doze anos sem que estes jamais suspeitassem de sua real identidade. Quando finda a guerra, ela volta para casa, veste seu quimono, solta e penteia seus cabelos, guarda sua armadura, deixa de lado o guerreiro e, diante dos olhares de admiração de seus companheiros de batalhas, volta a ser a filha, mostrando-nos que essas transições não são definitivas, nem únicas, nem imutáveis, afinal se é trans, em sua essência, tal mudança implica movimento... Os versos finais do poema ficaram a retumbar em nossas mentes, alvoroçando nossos corações... “Dizem que conhecemos uma lebre segurando-a pelas orelhas / Há sinais para distinguirmos / Suspenso no ar, o macho chutará e se debaterá, enquanto que as fêmeas ficarão paradas, com os olhos a lacrimejar / Mas se ambos estão no chão a pular em liberdade singela, quem será tão sábio para dizer se a lebre é ele ou ela?”
         Nossos encontros de partilhas e orientações foram intensos. Houve um momento que Ártemis e Apolo rodopiavam em torno de mim, como dois astros, Sol e Lua, a me guiarem nessa ciranda de imagens. Se existia uma estória como a do Príncipe Dragão e a do Rei que virou mulher, haveria outras. Essas narrativas, pequenas gotas de um vasto oceano mítico, era importante encontrá-las e contá-las? Por quê? Sim, porque todos nós temos o direito a uma identificação ancestral. Os mitos são narrativas sagradas que nos permitem habitar o mundo, dialogar com o mistério, entender-se parte dele, existir como ser humano. Eu precisava compreender melhor essa necessidade de ouvir e contar uma narrativa antiga sobre duas princesas ou dois príncipes apaixonados, pois aquelas pessoas que me pediam isso estavam cansadas daqueles mesmos contos, que na verdade, na maioria das vezes, foram alterados para que uma determinada mensagem fosse passada ou um princípio moral reforçado. O que elas reclamavam – e eu não havia percebido ainda –  era por seu direito mítico de existir.
         “Se você só fizer o que sabe, não vai ser nada além do que já é” – acabei de ver a adorável animação Kung Fu Panda 3, por indicação da Cris, e não resisti colocar esse ensinamento do mestre Shifu aqui. Como contadora, digo sempre que a luz dos olhos de quem me ouve é que me guia. São meus candeeiros, meus faróis. Os olhos daquela garota, à procura de contos de fadas nos quais se sentisse representada, instigaram-me a ir além das minhas certezas. Assim como o convite para esse trabalho me levou para além da minha assumida má vontade com as sessões de estórias com temas encomendados... Levaram-me além... Levaram-me a transpor, transitar, transformar, transcender... Então, vi nascer O jogo de você, uma criação coletiva na qual as contadoras Sarah Elisa, Emilie Andrade e Cristiana Ceschi, muito bem acompanhadas da musicista e cantora Tania Piffer, foram se perdendo e se encontrando em meio às narrativas que fui lhes apresentando. Foram pesquisando e experimentando contos, formas de contar, sequências, transições e possibilidades várias. Vejo nesse processo delas o próprio jogo mencionado no título da apresentação. Elas o vivenciaram tão verdadeiramente, que não havia como não proporcionarem essa experiência de natureza brincante ao seu público.     
         Contar e ouvir estórias é uma brincadeira maravilhosa muito antiga que nos leva a viver, para além do real, os sonhos sonhados pelos que vieram antes de nós e os sonhos que serão sonhados pelos que vierem depois de nós. Nesse momento poético de criação compartilhada, libertos das amarras das lógicas e imposições sociais, somos príncipes, princesas, princesas que viram príncipes, reis, rainhas, reis que viram mulher de lenhador, cavalos falantes, guerreiros, eremitas, sábios, bruxas, fadas, ogras, uma criança em busca de seu próprio nome, ou seja, adentramos nesse jogo de possibilidades sem fim, no qual experimentando e sonhando o que podemos ser, acabamos por descobrir e nos tornar, a cada passo de nosso caminho, um pouco do muito que realmente somos.

2 comentários:

Fabiana disse...

Foi mesmo especial fazer parte desse lindo processo criativo... O resultado foi de encher os olhos, os ouvidos e o coração de encantos... Gratidão.

Fabiana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.