Esse é um projeto sobre o Patrimônio Imaterial dos lugares de encontro.
Quem primeiro gostou dele foram as meninas do Turismo Social do SESC - Silvia, Leila, Flávia e Carol. Agradecemos de coração. Agradecemos também a equipe do Pompéia, gente muito especial.
Escutamos histórias de vida de pessoas que circulam pelo SESC Pompéia, transcrevemos essas histórias, sonhamos com elas e depois montamos um percurso poético com o intuito de trazer à tona essa rede de memórias vivas que constituem o tecido simbólico desse espaço.
Nomeamos como "narrativas líquidas" as histórias residuais vividas e/ou imaginadas que povoam um determinado espaço de uso coletivo. Liquidas porque são um bem simbólico, maleável, fluido que toma o formato da voz de quem as conta. E disso depende as histórias que povoam o campo imaginário dos espaços públicos: que alguém as conte para que o manancial de fantasia e vida simbólica nunca pare de jorrar.
O coletivo As Rutes foi fundado em 2007 com o firme propósito de trabalhar a potência poética dos encontros e das histórias de vida. Nesse projeto, lembramos desse lugar de onde partimos com a ajuda valorosa da especialista em histórias de vida Sandra Lessa. É muito bom quando uma parceira te ajuda a lembrar e a fabular algo tão importante do seu percurso. Sandra é mestra nessa arte.
Encontrar. Viver. Lembrar. Fazer transposição poética.
Abaixo, um primoroso relato da Sandra sobre a experiência vivida:
Um
farol para orientar náufragos
Matéria
feita de concreto e de tijolos. Aqui é impossível esconder a presença da
solidão da velha Fábrica. Longe das imensidões de um mar ou do horizonte de um
rio, é possível encontrar as coisas asiladas durante anos numa fria alvenaria.
E mesmo que esse espaço seja renovado e se faça aqui o carnaval, ainda assim
habitará os opostos entre o inacabado e o preenchido.
E nesse
épico espaço da grande cidade paulista, um rio corre por baixo. O Água Preta,
mesmo sendo esquecido pelo cinza-concreto, nunca deixou de passar pelas ruas
que ladeiam o Sesc Pompéia nem um dia sequer. O rio na sua sina de água fluída
não abandonou sua resistência e jamais deixou de correr.
Fomos no espaço-cinza investigar os antigos
afetos que circulam em cima deste rio. E navegamos guerreiros contra Lethé, o denso rio do esquecimento.
Sabe-se que quem beber de sua água ou, até mesmo, tocá-la experimentará o
completo esquecimento. E nessa trajetória é que trafegamos teimosos, colocando sutilmente
pequenas velas acesas na sua superfície e assim, convocamos lembranças vividas
de antigos navegantes. Também fomos demorados, sem pressa de viver. Buscamos
detalhes, algum souvenir que enobreça
a alma. Lembrar-se, do francês se-souvenir,
é deixar vir à tona o que estava submerso ou esquecido.
Aos
navegantes que ali encontramos esclarecemos, as lembranças que guiam nossas
velas-marinheiras podem ser vividas ou inventadas. Na verdade, tanto faz, pois
se foi vivida pode ser inventada e ser for inventada, foi vivida. É verdade, a
ficção não existe. Algum equivocado deu nome à ficção. O que existe, na verdade, são infinitas
possibilidades de inventar o que chamamos de real. Ou seja, só existe poesia.
Uma vez
esclarecida a viagem, na travessia do encontro não foi necessário esperar muito
para que a vela acesa evocasse as primeiras memórias apagadas. “O que você quer saber sobre o passado moça? Não
dá para ter medo das coisas antigas. Tudo que tem recordação é validado no
tempo. Eu, Hélio mais de 80 anos, já vi tudo acontecer, sou um lapiano de
nascimento. Hoje eu olho para minha esposa e rezo por ela. Sabe onde ela está?
No porta-retratos, e eu olho para ela e rezo por ela todos os dias, e ela olha
para mim e reza por mim todos os dias”.
Vela.
Fogo.
Veio ao
nosso encontro e me pulou da boca “ Como você está linda! ” E Elza desaguou à
vontade as gotas de um rio encanado. “Convenci
o maquinista que meu sonho era dirigir um trem. E como já era velha, não teria
muita oportunidade de realizar meu sonho. Acho que ele ficou com dó, e foi
assim que levei minha turma da ‘melhor idade’ numa excursão no Playcenter para passear na
Maria-Fumaça”.
Fogo.
Vela.
Para estarmos juntos, lado a
lado acendendo velas e fazendo a travessia em segurança, surge o acolhimento,
que nos chega em forma de aconselhamento, é como um reflexo na água das
experiências vividas através do tempo, ou, a criteriosa sabedoria popular. Os
conselhos vêm no fundo das palavras carregadas em um tom misterioso:
“Se um homem vier com valentia
para cima de você, você deve ser valente e meia”.
Vela.
“Se você encontrar alguém que o
amor é tudo, você está a ponto de fazer família”.
Acesa.
“Toda mulher que quiser saber o
que um homem procura, é só se concentrar e olhar bem no fundo da menina dos
olhos dele, ai ela, a menina dos olhos, revela a verdadeira intenção. Isso
chama-se intuição”.
Chama.
“Você sabe a verdadeira diferença entre uma
mulher e um homem? É que a cabeça do homem é por onde ele passa, é onde ele
vive. Já a cabeça da mulher é o mundo”.
Vela.
“Eu não sou velha, o velho está dentro de nós,
sabe o que eu sou? Eu sou um par de asas ”.
E se uma vela acesa na
superfície do Lethé servir como farol
para orientar naufragas lembranças, o que vier à tona iremos contar. É que as
notícias devem ser espalhadas de boca em boca para serem conservadas em vida.
Acendedores de velas, nós seguimos o conselho de Lourdes que cruzou nosso
caminho na calçada do Sesc e recomendou:
“Divulguem as boas notícias por
ai, gritem, contem e espalhem aos ventos”.
Sandra
Lessa
Em
agradecimento ao trabalho com Cristiana Ceschi e o coletivo As Rutes
Recolhimento
de histórias de vida no Sesc Pompéia junho/agosto de 2016
participaram da ação: Cristiana Ceschi, Cristiano Meirelles, Fabio Rosa e Sandra Lessa.
foto: Tatiana Barreto.
Agradecimento: Fernando Almeida, Fernando Antônio e Patrick.
Agradecimento especial a todos os depoentes que participaram desse projeto.
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