. jornada do patrimônio 2016 . narrativas líquidas do SESC Pompéia .


Esse é um projeto sobre o Patrimônio Imaterial dos lugares de encontro.

Quem primeiro gostou dele foram as meninas do Turismo Social do SESC - Silvia, Leila, Flávia e Carol. Agradecemos de coração. Agradecemos também a equipe do Pompéia, gente muito especial.

Escutamos histórias de vida de pessoas que circulam pelo SESC Pompéia, transcrevemos essas histórias, sonhamos com elas e depois montamos um percurso poético com o intuito de trazer à tona essa rede de memórias vivas que constituem o tecido simbólico desse espaço.

Nomeamos como "narrativas líquidas" as histórias residuais vividas e/ou imaginadas que povoam um determinado espaço de uso coletivo. Liquidas porque são um bem simbólico, maleável, fluido que toma o formato da voz de quem as conta. E disso depende as histórias que povoam o campo imaginário dos espaços públicos: que alguém as conte para que o manancial de fantasia e vida simbólica nunca pare de jorrar.

O coletivo As Rutes foi fundado em 2007 com o firme propósito de trabalhar a potência poética dos encontros e das histórias de vida. Nesse projeto, lembramos desse lugar de onde partimos com a ajuda valorosa da especialista em histórias de vida Sandra Lessa. É muito bom quando uma parceira te ajuda a lembrar e a fabular algo tão importante do seu percurso. Sandra é mestra nessa arte.

Encontrar. Viver. Lembrar. Fazer transposição poética.

Abaixo, um primoroso relato da Sandra sobre a experiência vivida:

Um farol para orientar náufragos

Matéria feita de concreto e de tijolos. Aqui é impossível esconder a presença da solidão da velha Fábrica. Longe das imensidões de um mar ou do horizonte de um rio, é possível encontrar as coisas asiladas durante anos numa fria alvenaria. E mesmo que esse espaço seja renovado e se faça aqui o carnaval, ainda assim habitará os opostos entre o inacabado e o preenchido.
E nesse épico espaço da grande cidade paulista, um rio corre por baixo. O Água Preta, mesmo sendo esquecido pelo cinza-concreto, nunca deixou de passar pelas ruas que ladeiam o Sesc Pompéia nem um dia sequer. O rio na sua sina de água fluída não abandonou sua resistência e jamais deixou de correr.
 Fomos no espaço-cinza investigar os antigos afetos que circulam em cima deste rio. E navegamos guerreiros contra Lethé, o denso rio do esquecimento. Sabe-se que quem beber de sua água ou, até mesmo, tocá-la experimentará o completo esquecimento. E nessa trajetória é que trafegamos teimosos, colocando sutilmente pequenas velas acesas na sua superfície e assim, convocamos lembranças vividas de antigos navegantes. Também fomos demorados, sem pressa de viver. Buscamos detalhes, algum souvenir que enobreça a alma. Lembrar-se, do francês se-souvenir, é deixar vir à tona o que estava submerso ou esquecido.
Aos navegantes que ali encontramos esclarecemos, as lembranças que guiam nossas velas-marinheiras podem ser vividas ou inventadas. Na verdade, tanto faz, pois se foi vivida pode ser inventada e ser for inventada, foi vivida. É verdade, a ficção não existe. Algum equivocado deu nome à ficção.  O que existe, na verdade, são infinitas possibilidades de inventar o que chamamos de real. Ou seja, só existe poesia.  
Uma vez esclarecida a viagem, na travessia do encontro não foi necessário esperar muito para que a vela acesa evocasse as primeiras memórias apagadas.  “O que você quer saber sobre o passado moça? Não dá para ter medo das coisas antigas. Tudo que tem recordação é validado no tempo. Eu, Hélio mais de 80 anos, já vi tudo acontecer, sou um lapiano de nascimento. Hoje eu olho para minha esposa e rezo por ela. Sabe onde ela está? No porta-retratos, e eu olho para ela e rezo por ela todos os dias, e ela olha para mim e reza por mim todos os dias”.  
Vela. Fogo.
Veio ao nosso encontro e me pulou da boca “ Como você está linda! ” E Elza desaguou à vontade as gotas de um rio encanado.  “Convenci o maquinista que meu sonho era dirigir um trem. E como já era velha, não teria muita oportunidade de realizar meu sonho. Acho que ele ficou com dó, e foi assim que levei minha turma da ‘melhor idade’ numa excursão no Playcenter para passear na Maria-Fumaça”.
Fogo. Vela.
Para estarmos juntos, lado a lado acendendo velas e fazendo a travessia em segurança, surge o acolhimento, que nos chega em forma de aconselhamento, é como um reflexo na água das experiências vividas através do tempo, ou, a criteriosa sabedoria popular. Os conselhos vêm no fundo das palavras carregadas em um tom misterioso:
“Se um homem vier com valentia para cima de você, você deve ser valente e meia”.
Vela.
“Se você encontrar alguém que o amor é tudo, você está a ponto de fazer família”.
Acesa.
“Toda mulher que quiser saber o que um homem procura, é só se concentrar e olhar bem no fundo da menina dos olhos dele, ai ela, a menina dos olhos, revela a verdadeira intenção. Isso chama-se intuição”.
Chama.
 “Você sabe a verdadeira diferença entre uma mulher e um homem? É que a cabeça do homem é por onde ele passa, é onde ele vive. Já a cabeça da mulher é o mundo”.
Vela.
 “Eu não sou velha, o velho está dentro de nós, sabe o que eu sou? Eu sou um par de asas ”.
E se uma vela acesa na superfície do Lethé servir como farol para orientar naufragas lembranças, o que vier à tona iremos contar. É que as notícias devem ser espalhadas de boca em boca para serem conservadas em vida. Acendedores de velas, nós seguimos o conselho de Lourdes que cruzou nosso caminho na calçada do Sesc e recomendou:
“Divulguem as boas notícias por ai, gritem, contem e espalhem aos ventos”.

Sandra Lessa
Em agradecimento ao trabalho com Cristiana Ceschi e o coletivo As Rutes

Recolhimento de histórias de vida no Sesc Pompéia junho/agosto de 2016













































participaram da ação: Cristiana Ceschi, Cristiano Meirelles, Fabio Rosa e Sandra Lessa.

foto: Tatiana Barreto.

Agradecimento: Fernando Almeida, Fernando Antônio e Patrick.

Agradecimento especial a todos os depoentes que participaram desse projeto.

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