. Um fio por sobre o tempo .
de Cristiana Ceschi para Alba Stela
Sou paulistana, filha de uma baiana com um são carlense.
Já dei algumas voltas pelo mundo, mas (ainda) não quero viver longe dessa cidade/labirinto chamada São Paulo.
Labirinto tanto pode ser aquela configuração espacial onde nos perdemos inconscientes, desesperados e somos encontrados por um monstro faminto que nos devora, quanto um lugar em que você se perde mas é portador de um fio, a linha de Ariadne, o fio do discurso, da história, aquele que nos ajuda a passar pela experiência, ser iniciado e encontrar o caminho de volta, sair de lá renascido, transformado, mais vivo.
Nos dias 19 e 20 de agosto, na inauguração do SESC 24 de Maio, descobri algo mais sobre esse fio de Ariadne que me ajuda a persistir nessa cidade desordenada, opressora e para muitos - monstruosa.
Bem pertinho do prédio onde está o SESC, lá na rua dom José de Barros, em 1982, meus pais abriram uma livraria especializada em livros importados. Lembro bem de ficar com eles no escritório, batendo carimbos, grampeando folhas, fazendo colares de clipes... era um tempo bom, de prosperidade.
Com a chegada da internet a pequena livraria foi perdendo seu lugar. Tudo ficou tão rapidamente complexo e ficamos soltos (ou presos) na rede de conexões online. O trabalho dos livreiros já não era mais tão necessário. Para comprar livros importados bastava (e basta) uns cliques no site de busca.
O ofício dos livreiros se reinventou mas a pequena livraria foi engolida. Foi um tempo bem difícil...a estabilidade escapou muito rapidamente pelos dedos e não havia fio que pudéssemos segurar. Ao mesmo tempo sei que meus pais forjaram a saída do labirinto...Como fizeram para sair não me lembro muito bem....
O que eu lembro é que no olho do furacão minha mãe tinha uma saída usual: passear na loja de departamento da antiga Mesbla. Quando ela se sentia cansada, triste ou amedrontada, corria para o subsolo onde ficava a sessão de roupinhas de bebê. Não comprava nada, só ficava por lá um tempão segurando as roupinhas até se acalmar.
Foi lá também, na 24 de Maio que em 2007 arriscamos nossas primeiras intervenções na cidade. Começamos a trabalhar nas ruas por um gostar de ouvir. Conhecer o que ainda não foi contado – as histórias residuais. Residual menos como resto de algo e sim como aquilo que excede: o imaterial oculto que permanece depois de esvaziado o senso-comum.
E criamos dispositivos de escuta para isso: placas, cabines, perguntas, apostando na eficiência transformadora que a nossa ação pode ter: algo simplesmente tem que acontecer!
Nossa pesquisa partia e parte sempre de um dado de “realidade” - a cidade e sua estrutura, os campos de força que ali se estabelecem, vamos coletando sensações e imagens ancoradas por uma pergunta norteadora: qual o espírito desse lugar? Esse algo que pode ser evidente mas pouco compartilhado? Essa substância que anima os lugares e sustenta a ações cotidianas?
Quando realizamos as ações no centro de São Paulo aprendemos a perfurar o senso comum para alcançar o lugar da comunhão, esse lugar do campo mítico, do que pensa e acontece através de nós. Nesse lugar de possibilidades não existe receio. Existe o Encontro e o sentimento de pertencer e de voltar da aventura com a alegria de ter reinventado as vidas.
E nesse final de semana, dez anos depois de ter formado o coletivo, fomos convidadas pelas meninas do Turismo Social do SESC a participar da inauguração do SESC 24 de Maio - construção belíssima aproveitada do antigo prédio da Mesbla - com a nossa intervenção CARTÃO PORTAL.
Nessa intervenção a Porteira Celeste e a Zeladora Celeste caminham pelos espaços em busca de PORTAIS e, depois de estabelecer o campo do Encontro, entregam para os participantes um PORTAL que é só dele junto com a chave de entrada: um cartão portal. Não vou explicar toda a ação pois um dia você leitor pode participar dela e estragaria a surpresa.
Bom, mas antes de terminar esse texto preciso pelo menos tentar dizer o que foi que eu descobri ou lembrei nesses dois dia de trabalho.
Foi uma tomada de consciência sobre aquela pergunta lá de cima: como meus pais sobreviveram ao labirinto, ou melhor, como todos nós sobrevivemos?
Nesse dias, ouvindo as histórias dos participantes sobre seus portais e circulando pelo o que virou o prédio da Mesbla, me dei conta primeiro de que eu gosto do centro de são paulo e volto para o Labirinto principalmente na tentativa de dar ordem ao caos, de recuperar uma certa unidade perdida. Nessas histórias que contamos e que me contam (eu já sabia) está o fio de Ariadne.... Só não tinha uma dimensão material da transversalidade do tempo, não tinha assim claro que eu ofereço e tomo um fio infinito que está para muito antes e muito além das minhas mãos. Nesse portal e junto do outro estou tão salva e inteira quanto minha mãe segurando um vestidinho lá no subsolo.
Subsolo daquele enorme prédio, da minha mãe e de mim mesma.
Texto: Cristiana Ceschi
Performers: Cristiana Ceschi e Melissa Panzutti
Fotos: Stela Handa
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